"Salazar autorizou a marquesa Olga do Cadaval a trazer ao país os grandes nomes da música do bloco comunista"
Hoje inaugura-se na Assembleia da República uma exposição sobre estes 240 anos de relações diplomáticas entre a Rússia e Portugal, que começaram no tempo de Catarina II a Grande e D. Maria I. O que vai ser mostrado?
Esta exposição foi preparada cuidadosamente pela Embaixada da Rússia em Lisboa com o valioso apoio da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas. Composta por dezenas de peças, fala sobre a rica história do relacionamento dos dois Estados, sempre baseado no respeito recíproco, simpatia sincera entre os povos, amizade e cooperação mutuamente vantajosas. Estes princípios invariáveis que têm existido quase um quarto de milénio (!), hoje em dia lançam os alicerces para uma nova dinâmica e nova qualidade das relações bilaterais viradas para o futuro. Nomeadamente, a exposição contém cópias de documentos históricos, tais como a página da Gazeta de Lisboa de 1715, que anuncia ao povo português o nascimento, em São Petersburgo, do neto do Imperador Pedro I o Grande, futuro Czar Pedro II. Ou retratos dos nobres portugueses cujo destino era interligado com a Rússia, e dos russos - vice-versa. Há muitas histórias e factos pessoais curiosos de interligação russo-portuguesa no passado e nos dias presentes. Por exemplo, sabia que em Lisboa também existem edifícios inspirados nos russos? O observatório, fundado em 1857, segue o modelo arquitetónico do observatório em Pulkovo, nos arredores de São Petersburgo, que, no século XIX, se considerava a capital astronómica do mundo. A exposição fala sobre esta curiosidade também, tal como do Palacete Morozov em Moscovo (construído entre 1895-1899, atualmente a Casa de Receções do Governo russo), cuja arquitetura foi influenciada pelo Palácio da Pena, em Sintra.
Ainda antes de 1779, já figuras como o médico Ribeiro Sanches se tinham destacado na corte dos czares. Quer salientar outras figuras portuguesas que tiveram protagonismo na Rússia?
Cabe mencionar, em primeiro lugar, António Manuel de Vieira (1682-1745) que foi um destacado estadista e chefe militar russo de origem portuguesa. Pertencendo à plêiade dos correligionários do Imperador Pedro o Grande, foi o primeiro chefe do Departamento Geral de Polícia de São Petersburgo (1718-1727 e 1744-1745), Conde e Senador (1726) e General-em-Chefe (1744). Ou o militar português Gomes Freire de Andrade (1757-1817), alcunhado de General Russo, que conseguiu licença para servir como voluntário no exército de Catarina II a Grande, em guerra contra a Turquia, e partiu para a Rússia em 1788. Na campanha de 1788-1789, comandada pelo Príncipe Potemkin, distinguiu-se em várias campanhas nas planícies do rio Danúbio, na Guerra da Crimeia e, sobretudo, no cerco de Ochakov. Foi alegadamente o primeiro a entrar na frente do regimento, quando a praça se rendeu em 17 de outubro de 1788, depois de um cerco prolongado. Condecorado pela Imperatriz Catarina II com a Ordem de São Jorge, foi-lhe atribuído o posto de coronel do exército russo, confirmado no exército português em 1790. Há muitos outros exemplos, como a cantora lírica Luísa Todi (1753-1833) que brilhou na Rússia. A convite da Corte Imperial, partiu com o marido e os filhos para São Petersburgo (1784-1788), onde Catarina II a Grande a presenteou com joias fabulosas. Em agradecimento, o casal Todi escreveu para a Imperatriz a ópera Pollinia. Até hoje em dia há portugueses que têm protagonismo na Rússia. O futebolista David Miguel Alves Gomes do Zenit de São Petersburgo (entre 2008 e 2017) é um deles.
Durante a Guerra Fria houve corte de relações entre a então União Soviética e Portugal. Mas nem nessa época nem antes chegou a haver alguma vez tensão militar entre a Rússia e Portugal, certo?
Certíssimo. O que queria destacar é que mesmo no período em que as relações diplomáticas entre os dois Estados estavam suspensas, mantinha-se o intercâmbio cultural e humanitário. A marquesa Olga de Cadaval (a Imperatriz russa Catarina II a Grande figura entre os seus mais ilustres antepassados) marcou a sociedade portuguesa enquanto mecenas e benemérita. Durante décadas realizou e apoiou o Festival de Música de Sintra que trazia a Portugal os maiores vultos da música contemporânea, incluindo os russos Stravinsky, Rachmaninov e Ashkenazy, entre outros. Salazar autorizou-a, por deferência especial, a trazer ao país os grandes nomes da música do bloco comunista. O caso mais emblemático é o de David Oistrakh.
Se resumir, qual é a mensagem principal da exposição?
Em duas palavras, a exposição, em várias formas, demonstra o grande potencial da nossa cooperação em todas as áreas, quer cultural, cientifica, humanitária, quer política, económica ou de investimentos. O que é importante é que temos uma vontade política forte de desenvolver a nossa cooperação em todos os domínios para estreitar ainda mais os laços de amizade entre os dois países, como demonstrou a reunião entre os Presidentes Vladimir Putin e Marcelo Rebelo de Sousa no Kremlin, em 20 de junho de 2018.